segunda-feira, 6 de julho de 2009

Na íntegra, a primeira entrevista da Revista Boemia, em novembro de 2008


Por: Rodrigo Brandão Blundi
Fotos: Arquivo Pessoal
12/11/2008

Ruy Faria: em defesa da boa música

SALVE, COMO É QUE VAI? Ruy Faria vai muito bem, obrigado. Um septuagenário que canta – com Carlinhos Vergueiro, em Uma Dupla Brasileira, e na adaptação que ele mesmo criou, produziu e dirigiu: transformou Calabar: O Elogio da Traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra, em Calabar Musical; um septuagenário que joga bola no Polytheama – a recente contusão no joelho o afastou dos gramados por tempo ainda indeterminado; um septuagenário que atua como advogado. POSSO SENTAR UM POUCO? Ruy Faria não rejeita um bate-papo; entrevista é algo que o chateia. Conta que vai de duas a três vezes por semana ao cinema, fica encabulado com os critérios de patrocínio para os produtores da arte da telona, “parecem sempre os mesmos”, e faz uma confissão avassaladora: “não gosto mais de música”. Não? “No meu rádio, só escuto jornalismo”. A VIDA É UM DILEMA. Esquiva-se quando o assunto é sua saída do MPB4, o que é absolutamente compreensível. Limita-se a dizer que toda a história está em seu website. Na internet, Ruy explica que Miltinho se apossou do grupo e o isolou. VOCÊ SE LEMBRA DELA? Sim, é claro. Juntava os amigos, comprava salgadinho, cerveja e uísque para ouvir o novo disco do grupo Os Cariocas. “O problema é que uma meia dúzia por aí se definiu como dona da Bossa Nova. E a abordagem da mídia é muito chata. Ah, saiu uma foto da Nara em que a unha do pé dela estava mal pintada. Foda se. O que isso muda na vida de alguém?”. JÁ AMOLEI BASTANTE. Com vocês, Ruy Faria.

Ruy Faria ou Ruy Fará? Aos 71 anos, você parece não ter limite, não ter sossego.
Ruy Farei. Ou Ruy Fiz, se preferir.

E a parceria com Carlinhos Vergueiro?
Está em pé. Com todo respeito, é claro. Atualmente, estamos trabalhando menos. O início exigiu bem mais. Mesmo assim, em junho, por exemplo, fizemos apresentações durante uma semana no Teatro Fecap, na Liberdade. Foi sensacional. Tanto o público quanto o local. Não sei se você conhece lá. É um teatro com capacidade para 400 pessoas... Olha, vou te contar uma coisa: acho que nunca fiz um show com uma tecnologia tão boa. E eles gravam tudo, depois enviam para nós. Por que você não leva esse show para Araraquara?

Mas vocês já estiveram aqui com esse show.
É verdade. Mas ele ainda estava verde. Seria um prazer voltar a Araraquara.

Qual é a sua relação com a cidade?
Eu fui casado com a Cynara, do Quarteto em Cy. E a Cylene, irmã da Cynara, era esposa do Osmar Chackur, que é de Araraquara. Viajávamos juntos, íamos muito a Ubatuba. Nós nos divertíamos bastante. Cerveja. E algo mais, sabe?

É provável que você não se sinta à vontade. Mas eu gostaria de falar sobre sua saída do MPB4.
Não me agrada mesmo, meu caro. Falar o quê? A minha saída do grupo ficou muito clara, está tudo na minha página na internet [www.ruyfaria.com]. Quem ainda não sabe e quiser saber o que aconteceu, basta olhar lá.

Nenhuma palavra?
É uma história triste, não gosto de falar sobre ela. A síntese de tudo o que aconteceu está logo no início do meu relato [no link gerais]: uma carta publicada pelo jornal O Globo [19 de setembro de 2007] em resposta a uma matéria que o mesmo veículo havia soltado alguns dias antes [11 de setembro] sobre a minha saída. E chega.

Eu conheci o MPB4 pelo disco Feitiço Carioca, em que cantam Noel Rosa...
Pois é. Eu que produzi e dirigi. Fez muito sucesso. Uns dois meses de muito sucesso mesmo. Assim como Arte do Encontro, em que o octeto – nós e o Quarteto em Cy – cantava Vinícius de Moraes. Outro grande sucesso, também abortado prematuramente, assim como o Noel.

E o Nova Música Brasileira. Dudu Nobre, Zeca Baleiro, Samuel Rosa, Chico César, Adriana Calcanhoto, Zélia Duncan, Paulinho Moska. Não há, digamos assim, uma dissonância em relação à proposta original do MPB4?
Acho que isso não vem mais ao caso.

Espere. Não quero ser tendencioso na pergunta. Apenas considero válida a observação.
Naquele momento, minhas preferências eram por outros trabalhos. Foi um projeto que não me encantou. Mesmo assim, eu dei o melhor de si [risos]. O Jairzinho, filho do Jair Rodrigues, é muito competente como produtor e tal... Enfim, deixemos esse assunto de lado.

E Zeca Pagodinho cantando Olê, Olá na comemoração dos 40 anos do MPB4? Ele tem approach?
Pois é, rapaz. O Zeca é um cara legal. Eles comemoraram os 40 anos com um CD e um DVD. Mantiveram os arranjos, com o Dalmo no meu lugar. Assim é fácil, né? Eu não ganhei um centavo. O Dalmo é sobrinho do Cauby, que também participou da comemoração. O Cauby tem tudo a ver com o MPB4, não é verdade?

E o Lenine? Também havia uma canção dele no disco Nova Música Brasileira.
O Lenine é um grande amigo e um grande artista. Da época das vacas magras. Eu o respeito muito. Assim como o Sidney Miller também o foi. Tenho até uma canção com o Sidney, Mar da Tranqüilidade.

Antes, o morro produzia samba. Hoje, produz funk. O Rio de Janeiro continua lindo?
Olha, eu vou lhe fazer uma confissão... Não gosto mais de música. Acho tudo muito chato. No meu rádio, só escuto jornalismo. BandNews, CBN. Não tenho mais paciência para música. Devo estar velho. Sou um sujeito ultrapassado.

Em 1951, quando publica Claro Enigma, Drummond abre o livro com uma epígrafe que remete a Valèry. “Os acontecimentos me entediam”. Curiosa essa inversão. Na verdade, parece-me que os fatos são sempre semelhantes.
Concordo. Imagine então a paciência que tenho para ouvir música.

A arte decaiu?
Sou um cinéfilo inveterado. Vou duas, três vezes por semana ao cinema e vejo muita coisa boa.

É provável que, entre cinema, literatura e música, o primeiro seja o mais preservado em relação à qualidade.
Tenho visto muita coisa boa, muita coisa interessante no cinema, mesmo com a maioria das salas ocupadas pelo Batman, que, afinal, também achei legal. Quanto à literatura, não sou o que poderíamos chamar de leitor assíduo. Gosto de filosofia, em particular do Montaigne. E, como já disse, minha paciência para a música, em especial para a nova música, a música da maioria das rádios, ficou bem pequena. Eu gosto de cinema, vou ao cinema e vejo ótimos filmes, belas produções, belos roteiros, belas interpretações. O que me intriga no Brasil é essa coisa do patrocínio. Quem consegue esses patrocínios? Isso é estranho. Parecem sempre os mesmos. Eu gostaria de saber sobre os critérios adotados não só para os patrocínios mas também, e principalmente, para a distribuição.

Calabar. Você montou a peça do Chico Buarque e do Ruy...
Calma. Foi uma adaptação. Fiz questão de deixar clara minha proposta logo no título: Calabar Musical. Retirei alguns personagens e diálogos, inseri alguns pequenos cacos. Resumi a dramaturgia e valorizei a música. A verdade é que fiz um musical a partir de uma peça de teatro. Que, obviamente, já tinha um viés musical muito evidente, muito forte. A obra original é simplesmente genial. Procurei manter o seu espírito.

A peça integra o que muitos críticos chamaram de teatro de resistência, pertinente aos anos 70. Que sentido Calabar tem hoje?
Eu não montei o musical para retomar questões históricas ou políticas, seja de um passado mais remoto – o que significa discutir se Domingos Fernandes Calabar foi ou não um traidor e qual a visão sobre ele por portugueses ou holandeses –, seja referente a um passado que nos é familiar: a ditadura. E é preciso lembrar que, em momento algum, o Chico e o Ruy dizem se Calabar foi bom ou ruim, se de fato foi um traidor ou não. As músicas da peça têm um alto valor estético. E isso é que me interessa. Sobre os cacos, na hora do boi voador, inseri um texto que fala mais ou menos assim: “neste país, os bois, as vacas e as bezerras fazem milagres”. Era uma alusão às histórias atuais de alguns políticos, não é mesmo? No Brasil, o boi voa faz tempo. E ainda voa. Há um trecho, no final do espetáculo, em que Nassau diz: “a palavra do homem de consciência só pode transformar o passado, mas o passado não tem outra possibilidade de transformação que não seja a de ser contado de um modo diferente”. Não é interessante?

Acredito que, ao justificar o vôo do boi, tenha se recordado do Renan Calheiros. Vale lembrar que o Daniel Dantas é apontado como o maior pecuarista do mundo.
Então. O boi continua voando no Brasil. Isso não muda nunca. Veja essa parte de Fado Tropical: “ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso canavial” [sic]. Quer algo mais atual? Nada muda.

O nome original da peça é Calabar: O Elogio da Traição. Algo a ver com sua saída do MPB4?
Não, de modo algum. Eu já estava trabalhando em Calabar Musical antes de deixar o grupo.

Você é amigo do Chico.
O Chico é uma pessoa requisitadíssima. Você não imagina o assédio em cima dele. Ele é um gênio. Se eu tivesse de defini-lo, eu diria que o Chico é um sujeito anormal que leva uma vida quase normal. Ele é um ser humano normal. Joga bola, xinga, sacaneia. Eu jogo, ou jogava?, duas vezes por semana no Polytheama. Agora estou machucado. Uma contusão no joelho que me enche o saco pra cacete. Enfim... O Chico tem um talento fora de série. Alguns artistas criam uma aura de gênio em torno de si. Esses caras tentam se fazer gênio. O Chico, não.

Eu queria que você falasse do Rio de Janeiro. Temos uma idéia de uma cidade extremamente violenta. Essa noção supera a de beleza exuberante.
Faz sentido. Sim, hoje o Rio é muito violento. Você está sujeito a sair e ser assaltado, a levar um tiro. Os traficantes dominaram os morros. O crime domina a cidade, muitas vezes com o apoio da polícia. Nada disso é lenda. Mas não existe um lugar mais bonito para morar. Ou seja, há também essa combinação entre beleza e oportunidade. Vou fazer o quê? Mudar para a zona rural e ficar vendo vaca o dia todo? Às vezes até me dá vontade de fazer isso. Eu moro no comecinho da Barra, em uma cobertura com uma vista maravilhosa. Se eu pudesse, nem saía de casa. Mas eu preciso ganhar a vida, meu jovem. É claro que antigamente a cidade era mais tranqüila. Saíamos a pé, de madrugada, e não havia problema, a não ser o nosso estado etílico.

E os 50 anos da Bossa Nova?
Não, não. Isso já encheu o saco. Chatíssimo falar disso.

O João Donato teve mais ou menos a mesma reação sobre o tema, logo na primeira pergunta de uma entrevista concedida à Folha.
Então. Se o João Donato falou, tá falado.

Mas a comemoração é válida. Ou não?
Não é essa a questão. O movimento foi bacanérrimo. Os Cariocas, por exemplo. Eu amo Os Cariocas. Lembro que quando saía um disco deles, nós fazíamos reuniões, comprávamos salgadinho, cerveja, uísque e nos juntávamos para ouvir o disco. O problema é que hoje uma meia dúzia aí passou a se considerar dona da Bossa Nova. E a abordagem da mídia é muito chata. Ah, saiu uma foto da Nara em que a unha do pé dela estava mal pintada. Foda-se. Ah, o João Donato espirrou duas vezes em uma apresentação. Caguei. O que isso pode acrescentar a alguém? Todas as pessoas hoje têm um livro de memórias. Eu fico curioso para saber quem é que lê esses livros.

“Os acontecimentos me entediam”. Paul Valèry.
A mim também. E as músicas que tocam nas rádios me entediam ainda mais.

Como era o Vinícius?
Era um cara sensacional. Quando o conheci, ele paquerava a Cynara. E, depois, eu me casei com ela. Ele era muito galinha. Tem uma história muito engraçada. Estávamos em Salvador. O Vinícius era casado com a Jesse e, segundo ele contava, havia uma maldição que ela lançou sobre ele: se ele a traísse, o pau dele ia cair. E a gente, em Salvador, bebendo. E bebendo. E bebendo. Até que ele começou a achar uma amiga nossa, bem feiinha, muito interessante. E partiu para cima dela.

E ele a traiu?
Sei lá. Acho que sim. Será que ele conseguiu?

E o Tom?
O Tom era um gênio. Um sujeito maravilhoso e, acima de tudo, muito inteligente. Tinha um imenso conhecimento da vida e do mundo.

Ficou difícil ser músico, Ruy?
Hoje tem mais músico do que gente, sabe? Todo mundo é ator ou é músico. E tem uma profissão nova agora, uma espécie nova, que é a celebridade. O que você é? Eu sou celebridade. No Rio existem 50 músicos por metro quadrado. Meus filhos são músicos. O João é baixista e o Francisco é cantor e bandolinista. O Francisco gravou um CD com composições do Chico Buarque. Chico Canta Chico é o nome do álbum. Com arranjos do Luiz Cláudio Ramos, maestro do Chico Buarque. Sou suspeitíssimo, mas é lindo. Lançou no Japão e na Itália. Aqui, não conseguiu.

Você voltou a atuar como advogado.
Voltei médio. É uma linda profissão, mas a Justiça é um inferno, se quer saber a verdade. Processos demoram anos, corrupção, tráfico de influência e jogos de interesse pra tudo quanto é lado, juízes comprados... Estou ranzinza, né? Estou velho. Não repare, é assim mesmo.

E está na ativa?
Um amigo meu, que tem um escritório aqui no Rio, me convidou para trabalhar lá. Vou lá uma vez por semana e andei fazendo algumas coisas. Mesmo com todos os problemas, ando procurando uma maneira de tornar a coisa divertida.

E o advogado Ruy, quem ele prenderia?
Sei lá, meu camarada, acho que não faltariam merecedores, não lhe parece?

“Chame o ladrão”, do Chico. Que tal?
Com certeza. Mas já não tem mais a mesma graça que tinha quando foi composta. Tem mais pergunta?

Acabou.
Escute: por favor, não me venha com essa coisa de memória, não. Estou com o saco cheio disso.

O jornalista sou eu. Por acaso, eu vou ao seu show e fico dizendo o que você tem de cantar?
[Risos]. Já te falei. Cuidado. Estou ficando muito velho. Por que você não me contrata para trabalhar na sua agência?

Manda o currículo.
[Risos]. Olha lá, hein! Sou bom de idéias. Sou muito bom de idéias. E o melhor: eu sou modesto.

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